Torta vegana de liquidificador

8 de Julho de 2017 § Deixe um comentário

A torta de liquidificador – uma massa simples misturada a um refogado salgado e assada – faz parte de um repertório de comidas caseiras importante no Brasil nos últimos 50 ou 60 anos. Cresci comendo tortas de frango e de atum feitas por esse método, e há algum tempo vinha me dando uma saudade, e eu vinha pensando em desenvolver minha própria receita, agora vegetariana. Como, mais por curiosidade que por restrições alimentares, venho explorando substituições para laticínios e ovos, fiz hoje uma receita que também é vegana.

A receita ficou muito saborosa porque em vez de eu substituir o leite por algum tipo de leite vegetal, substituí por uma batida de tomate e banana. A banana ajuda a dar liga à massa e carameliza um pouco, e o tomate tem umami que é aquele gostinho de amor que a gente também reconhece nas carnes. Uma ligeira apimentada no refogado também ajuda a deixar o sabor mais intenso e variado. Os contrastes entre doce e salgado, gordura e pimenta, duro e mole são importantes nesta receita. Cada pólo acentua a sensibilidade ao outro.

Também, por saudades de comer milho, fiz a massa com fubá. Combinou muito, dando uma memória de tamales e de cuscuz paulista. Os que quiserem podem fazer uma torta parecida com a receita da massa do pão do novo mundo, que foi a base desta receita.

Ingredientes

Massa

1 xíc fubá

1 tomate grande

1 banana média

3 csp chia (pode virar 1 ovo)

água filtrada

azeite ou manteiga

sal

pó Royal


Refogado

ervilhas (melhor frescas)

vagem

couve-flor

alho-poró

sal

cominho

pimenta-vermelha em pó

azeite ou manteiga


Procedimentos

Para começar, refogue o alho-poró até dourar, em azeite ou manteiga. Acrescente as ervilhas, a vagem, picada miúda, e a couve-flor, picada em tamanhos suficientemente pequenos para serem cobertos pela massa. Salgue para que elas suem um pouco, e deixe fritar levemente, até dourar se for o caso. Coloque então um pouco de água para garantir o cozimento. Acrescente a pimenta vermelha em pó e o cominho (uma colher de café basta) e finalize, não deixando nenhum caldo, e reserve (deixando esfriar).

Ligue o forno a 220°C.

Bata no liquidificador o tomate, descascado, e a banana, com água suficiente para cobrir. Acrescente a chia e um pouco de sal, e bata mais um pouco. Deve ficar com uma consistência  a próxima à do leite, não muito polpudo, nem excessivamente aguado. Num bacia, peneire o fubá e acrescente a mistura batida, misturando com uma espátula até ficar completamente homogênea. A massa deve ficar suficientemente mole para não ficar muito estável, mas ainda assim grossa. Experimente o sabor da massa para verificar o sal.

Prepare uma fôrma média. Pegue o refogado de legumes e verta na bacia. Misture um pouco. Acrescente uma colher de sopa de pó Royal, mexa delicadamente. Verta tudo na forma e leve ao forno. Em 15 minutos, pode baixar a temperatura para 200°C.

Depois de uns 40 minutos já é possível conferir a temperatura para ir acertando o ponto que você quer. Aqui nós gostamos da massa mais pra queimadinho, o que quer dizer cerca de uma hora.




Ensinamentos ameríndios: salsa para Jamille

3 de Dezembro de 2016 § Deixe um comentário

Para comemorar a defesa de doutorado da minha amiga Jamille Pinheiro, decidi fazer uma salsa que pudesse entrar nos pratos dos comensais de um pequeno encontro conforme as vontades de cada um. Segui o esquema mexicano mais básico (cebola + tomate + pimenta + coentro) e acrescentei coisas que achei no sacolão para dar um toque.

Ficou assim:

salsa2

 

Esta salsa levou os seguintes ingredientes, picados o mais miudamente que a cozinheira consegue:

  • dois tomates (descascados) bem maduros
  • meia cebola roxa
  • um pimentão amarelo médio (também descascado)
  • um dedo-de-moça pequeno, sem as sementes
  • umas três colheres de sopa de maracujá, fruta fresca
  • um punhado de folhas frescas de coentro
  • sal a gosto

Como outros vinagretes e marinadas, a quantidade dos ingredientes pode variar conforme o gosto do freguês; eu fui colocando aos poucos cada ingrediente e cheguei a esta proporção, mas tem sempre uma pimenta mais forte ou mais fraca, um maracujá mais pro amargo etc. Além disso, é bom preparar a salsa com um pouco de antecedência, para o sal puxar o caldinho dos ingredientes.

Depois da salsa servida e comida foi que me dei conta do sentido mais profundo dessa combinação de ingredientes: tanto as pimentas vermelhas, quanto os pimentões, os tomates e os maracujás são ingredientes oriundos das Américas que se disseminaram pelas mãos dos colonizadores e se tornaram importantes em outras culinárias. A familiarização dos outros paladares – europeus, africanos, asiáticos – com o tomate e as pimentas, principalmente, passou por diferentes ritmos de adesão e percalços históricos (vide esta história do medo de comer tomate na Europa). A disseminação desses sabores, de todo modo, em geral silencia ou apazigua as histórias da invasão europeia e do genocídio e exploração dos povos ameríndios.

Desde a invasão europeia nas Américas, os povos indígenas dizem que os europeus e seus descendentes somos uma gente agressiva, desmemoriada, incapaz de ouvir bem o que eles estão nos dizendo e de respeitar os combinados que faz. A Jamille faz parte de um grupo de pessoas que tem se preocupado em afinar os nossos instrumentos para sanarmos algumas dessas nossas deficiências históricas na compreensão dos saberes ameríndios. Quem sabe a gente possa, junto com o hábito de comer tomate, pimenta, salsa, maracujá, readquirir e aprender um pouco, também, de uma ética menos colonizante.

Sopa do yahabibi: trigo em grão e sabores árabes

28 de Junho de 2016 § 1 Comentário

​Fazia tempo que eu tinha vontade de fazer uma sopa de trigo em grão. Meu marido (o yahabibi no meu caso) é de origem sírio-libanesa e a mãe dele já havia me contado que fazia, mas acabei não comendo nunca na casa deles. Ele faz muito bem muitas comidas sírio-libanesas, mas essa acabava ficando pra depois. Sempre quis fazer uma aqui em casa, porque minha mãe gosta muito de fazer essa sopa no inverno. A versão que conheço vem da dona Yvonne e da Ivoninha (filha dela), filha e neta de libaneses, que fazem com frango, bem substanciosa, boa pra dias frios, e cheirosa. Minha memória gustativa dessa sopa era do frango, do trigo e dos temperos sírios, embora nada muito específico, porque na época em que comia essa sopa com mais regularidade eu não tinha um paladar muito treinado.

Hoje eu decidi pôr na água um trigo em grão que minha mãe me deu de presente e dar um jeito de fazer minha própria receita da sopa, sem o frango. Estudei algumas variações na internet e decidi fazer com uma base que parece a da tagine marroquina (cebola e tomate queimados e caramelizados).

Vale um comentário sobre os outros temperos, porque a combinação que eu usei é boa pra muitos pratos feitos em cima da hora: cúrcuma, cominho, canela e pimenta da Jamaica. O chamado tempero sírio costuma ter o cominho, a canela e a pimenta da Jamaica, e mais alguma coisa (pimenta do reino, normalmente). Eu usei pimenta malagueta pra sopa ficar bem quentinha. A cebola queimada e caramelizada é um clássico árabe. E numa receita marroquina eu vi um limão espremido que me encantou, e açafrão, que seria um luxo e eu resolvi substituir pela cúrcuma (que diminui a agressividade da pimenta na boca e no estômago). Decidi também acrescentar um coentro, que puxa a sopa mais pros lados de Portugal, e que eu sempre acho uma boa ideia quando a comida vai ficar apimentada, porque dá um contraste gostoso.

Ficou assim esta sopa uma espécie de navegação pela costa sul do Mediterrâneo, do Líbano até Portugal, atravessando em diversos sabores a intensidade dos afetos árabes que tanto marca a sua comida (na minha opinião, a que tem mais gosto de amor).

Substituí a galinha por shiitake, mas obviamente quem quiser fazer com galinha também pode! E dá pra acrescentar mais legumes, ou lentilha, ou grão de bico que também fica muito bom.

É importante notar que essa é uma sopa que se desenvolve com o tempo, então o ideal é não fazer em cima da hora. O tempo de descanso dela faz toda a diferença.

Ingredientes

2 xícaras de trigo deixadas de noite na água 

1 tomate picado em cubos

1 cebola roxa picada em rodelas

1 dente de alho picado

Cúrcuma picada ou em pó (1 col de sobremesa)

Pimenta síria

Pimenta malagueta

1 punhado de coentro fresco, picado

Cogumelo shiitake fresco picado em pedaços grandes 

Cominho em pó 

Canela em pó 

Procedimentos

Ponha o trigo com um dedo de água sobrando por cima e deixe 15 minutos na pressão. Na frigideira, queime a cebola (e os pedaços de frango se for usar) no azeite, acrescente o alho e o tomate e deixe reduzir, caramelizar. Coloque sal aos poucos para eles irem suando ao longo desse processo.

Quando os grãos de trigo estiverem mastigáveis, acrescente esse molho à sopa (pegue o restinho do fundo da frigideira com a própria água da sopa). Deixe em fogo baixo, fora da pressão. Acrescente os outros temperos, moídos – menos o coentro! – e mexa vigorosamente, amassando um pouco o trigo para ele ir soltando o amido para a sopa. Apague o fogo e deixe descansar por quanto tempo for possível. 

Um pouco antes de comer, esquente a sopa e, ao levantar fervura, jogue o cogumelo e o coentro. Desligue o fogo após 3 minutos.

Sirva com azeite e limão espremido.

Coisa boa: mungunzá para amar

8 de Maio de 2016 § Deixe um comentário

Coisa boa, como gostam de dizer os soteropolitanos, é quando você está andando pela cidade da Bahia, curtindo o calorzinho, o barulhinho e o sobe e desce das ruas, sabendo que tem água dos dois lados da península, e aparece alguém vendendo um mungunzá.

Bom também é comer uma canjica no vento frio das festas de junho no sudeste; andando pela cidade, dar de cara com uma quermesse, virar pro companheiro dois olhos sapecas e dizer: que vontade de comer uma canjica!

O mungunzá ou canjica é casa e rua ao mesmo tempo. Na rua ele te esquenta como um cobertor, e em casa ele te leva pra festas e passeios. Ele também atravessa o tempo biográfico: tem gosto de avó e de infância.

De coisa boa.

Este disco do Moreno Veloso combina bem com um mungunzá.

Já fazia uns dias que eu estava doida para fazer um mungunzá em casa, e hoje ainda na cama estava meditando sobre como ia fazer esse milho que estava na água desde ontem à noite. Não existe mungunzá e canjica ruim – tem que ser muito ruim de jogo pra errar tanto assim – mas eu fico meio desapontada quando tem leite condensado demais, que desaparece com o delicado sabor do milho branco. Por outro lado, o açúcar é importante para fazer o coração bater. Então resolvi experimentar queimar o açúcar antes de pôr o milho no leite.

Ficou bom e ainda deu gosto da minha bisavó, que fazia leite com açúcar queimado pra gente. Pus também umas especiarias que já são tradição da avó que serei um dia.

Então lá vai minha receita.

Ingredientes

500g de canjica/milho branco

1l de leite

1 vidro de leite de coco

3/4 xíc de açúcar

canela em pau

3 ou 4 cravos

1 pitada de sal

Se tiver em casa:

sementes de um bago de cardamomo

1 grão de cumaru descascado e picado

Procedimentos

Deixe o milho numa bacia com água filtrada durante a noite. De manhã troque a água e cozinhe na pressão por 30 minutos.

Ponha o açúcar numa leiteira de metal com as especiarias. Ligue em fogo baixo e vá mexendo com uma colher de pau. O açúcar vai derreter e vai escurecendo. Quando ele estiver mole e as especiarias já estiverem cheirando, verta o leite por cima. Pode subir um pouquinho o fogo e ir mexendo devagar. O açúcar vai endurecer primeiro, mas depois que o leite esquentar bem ele amolece de novo. Quando tiver diluído tudo, mexa mais um pouquinho e apague o fogo, antes do leite ferver.

Verta esse leite com tudo que tem dentro, mais todo o leite de coco, mais uma pitada de sal, sobre o milho cozido, e acenda o fogo baixo. Deixe um pouco mais de leite ou leite de coco à mão porque esse milho vai bebendo o leite e crescendo, aí ele seca. Se sentir que ficou pouco doce coloque um pouquinho mais de açúcar. Mexa regularmente pra não grudar ou queimar o fundo da panela numa desatenção.

Desligue com ele um pouco mais líquido do que você comeria, e deixe descansar antes de comer. Pode comer frio ou quente – mas é melhor quente.

 

Mais variações americanas: Chipa paraguaia!

21 de Abril de 2016 § 1 Comentário

Abrimos aqui, meio que sem perceber, um repertório de receitas de roça das Américas que foram bem adaptadas para nossa vida corrida, e aquecem o coração quando estamos precisados (isto é, quase sempre!). Hoje a querida Lorena Avellar de Muniagurria, que já publicou receita neste blog, nos presenteia com uma receita de família, disseminando assim mais afeto e reconforto nestes dias estranhos.

Esta receita de chipa é maravilhosa e muito prática. Apenas aqui em casa ela não rende tanto, porque a gente come as chipas com muita gula!

Obrigada, Lorena!

***

Chipa paraguaia, por Lorena Avellar

chipa 2

A chipa é uma receita típica do Paraguay. Em viagens intermunicipais, os ônibus param para que as chiperas subam e vendam as roscas quentinhas e cheirosas. É também uma comida típica de rua: encontra direto vendedores no centro da cidade. E, durante a páscoa, é um ítem praticamente obrigatório em todas as casas: num passado não muito distante, fazia o papel que o chocolate hoje tem nessa celebração. Há chipa também em certas regiões do Brasil, como o Mato Grosso do Sul. Mas como nunca estive por lá (ainda!), vou falar aqui da que conheço, que é a paraguaia. A referência mais próxima que temos nas regiões brasileiras que não tem chipa seria o pão de queijo, mas a principal diferença é que leva também farinha de milho, erva doce, e que não precisa escaldar o polvilho – por isso este pãozinho é muito, muito fácil de fazer. As chipas que já encontrei em padarias e supermercados na região sul e sudeste no Brasil, pra mim, não contam como chipa – não sei ao certo por quê, acho que talvez não usem a farinha de milho… só sei que são diferentes.

Esta não é uma versão “campesina” da receita, é uma adaptação feita por minha mãe, Carmem, que é brasileira – mas que de tão gostosa até minha avó, que era paraguaia, passou a usar. A receita tradicional era com banha de porco, mas assim como nesta variação, muitos têm substituído essa gordura por óleo de cozinha. Uma coisa que vocês vão ver é que essa receita aceita tranquilamente pequenas variações de quantidades, e até de alguns ingredientes: mais ou menos mole, este ou aquele tipo de farinha, leite ou iogurte… sempre dá certo!

Os ingredientes:

– 500gr polvilho doce

– 1 xic farinha de milho: funciona com qualquer uma, eu costumo usar fubá; minha mãe já fez com a flocada; eu até já usei polentina…

– pitada de sal

– erva doce a gosto: eu coloco bastante, umas 2 colheres de sopa; lembre que tem que dar uma esfregadinha com a mão pra soltar o aroma

– 1 xic leite: leites e laticínios azedos são óóótimos nesta receita: se tiver, uso leite talhado (não estragado, tá gente?!), iogurte natural que por ventura esteja sobrando, ou até soro de iogurte (sabe o líquido que sobra quando você escorre uma coalhada ou iogurte pra fazer coalhada seca?)

– 1/2 xic óleo: óleos “de cozinha”, como girassol, soja, etc. Azeite de oliva teria um gosto muito marcado pra esta receita, mas funcionaria também.

– 4 ovos

– 300gr ou mais de queijo ralado ou triturado no processador: o indicado são os queijos mais coloniais, um pouquinho mais secos (em São Paulo, os mais aproximados são os chamados “meia cura”). Mas pode ser o queijo mais barato que você encontrar. Eu tenho feito direto com muzzarela, que a princípio está longe de ser o ideal, por conta do custo.

Preparo:

Pessoalmente, creio que a sequência de ingredientes não faz tanta diferença aqui. Eu misturo bem primeiro os secos; aí acrescento os molhados e misturo um pouco; por último acrescento o queijo e misturo bem, aí sim, procurando deixar homogêneo. Em geral, o ponto dá certo, e não precisa de correção; ela fica uma massa que lembra massinha de modelar. Às vezes, ela pode grudar um pouquinho na mão, mas não demais: o teste é fazer uma bolinha e ver se ela fica lisa. Se grudar a ponto da bolinha ficar crespa, é porque precisa um pouco mais de farinha (eu complemento com a de milho). O formato é variado, e você pode brincar com ele; mas é bom fazer um ou dois cortes por chipa, pra ele assar melhor e também pra dar um toque visual.

Deve-se assar em forno bem quente (tradicionalmente, é feita em forno de barro, que atinge temperaturas super altas). Caso sua forma não seja antiaderente, é bom untar e polvilhar farinha de milho. Considere que elas crescem bem de tamanho (quase dobram), então é necessário deixar um espaço entre elas. Estão prontas quando dourarem – em geral, uns 20 a 25 minutos em forno alto. Come-se quentinha!!

Essa receita é pra muuuuita chipa. Se for tamanho “coquetel”, rende quase 80. Num tamanho médio, dá umas 55. Se grandes, umas 40. Eu costumo fazer a receita inteira, e aí congelo as chipas já moldadas e cruas, assim como é feito com pão de queijo: você congela elas sobre uma tábua ou superfície plana, sem empilhar, e depois de congeladas pode colocar todas juntas em um pote ou saquinho. Pra assar, é só levar direto do freezer ao forno pré-aquecido; normalmente leva só uns 5 minutos a mais de forno do que as não congeladas. Aqui em casa rola direto café da manhã com chipa; levanta, coloca no forno, e enquanto assa vai “acordando” e preparando o café, que tudo fica pronto ao mesmo tempo. Caso você saiba que vai usar nos próximos 2 ou 3 dias, a massa aguenta bem na geladeira, desde que bem coberta com plástico pra não ressecar.

chipa

Feijão para minha bisavó

16 de Janeiro de 2016 § 2 comentários

Ando alimentando questões sobre memória e a noção de pessoa. A relação entre as duas coisas implica uma multiplicidade de versões, a simultaneidade de sermos quem somos para nós, quem somos para cada pessoa que convive conosco, quem somos ao interagir com cada uma dessas pessoas, e o que cada um de nós leva consigo dos outros. Por outro lado, implica também os efeitos do tempo nessa multiplicidade de eus que somos: como eles se transformam, o que deles perdura, em que matéria eles permanecem?

Normalmente eu observo os documentos que as pessoas deixam, e que são uma das matérias-primas para a produção de narrativas sobre elas, em vida ou após a sua morte. Mas há outras matérias que elas deixam que não viram documentos, e outras, ainda, que não têm como virar documentos, pois elas não podem ser legitimadas, lavradas, oficializadas. É uma dessas matérias de memória que gostaria de compartilhar na receita de hoje.

Tive a sorte de conviver com uma doce bisavó até os meus dezesseis anos de idade. Minha bisavó era uma mulher do sul de Minas que migrou para o noroeste paulista, que estava sendo intensamente colonizado nos anos 50. Minhas memórias pessoais da Bisa se dispersam ao longo de dezesseis anos da minha vida. A primeira é a imagem do papa João Paulo II, escrito Bradesco embaixo, olhando diretamente para a porta de entrada – que, curiosamente (só mais tarde fui entender a lógica disso), ficava nos fundos da casa, dando para o quintal. Tinha uma cadeira bem embaixo dessa imagem, onde ela muitas vezes ficava sentada, olhando para a porta, ao lado de uma mesinha também encostada na parede. A pequena varanda sobre o quintal, de piso de cimento queimado, onde havia um tanque, uma mesa, algumas cadeiras e plantas, e onde se fazia uma parte dos trabalhos da casa: lembro de minhas tias-avós passando roupa. O quintal, com um pé de figo, uma pequena horta, uma jabuticabeira. O jardinzinho da frente, com um pé de cabaça, rabos-de-gato e uma florzinha chamada “peidinho de véia”. A pequena cozinha, com móveis de metal, uma pequena mesa onde sempre havia biscoitos de polvilho, doce de leite em cubos, bala Chita, uma térmica cheia de café, um vidro de açúcar. Sobre ela, na parede, um relógio que ainda se vê por aí, cujo ponteiro era uma borboleta passando por flores e que a cada hora tocava uma melodia de carrilhões em timbre eletrônico mequetrefe. Coca-cola, sempre geladíssima, na geladeira. Era a primeira coisa que a vó oferecia, e ela parecia sempre estar tomando. Eu acho que nunca vi a minha Bisa comer, só tomar Coca-Cola, e acabamos formulando a hipótese de que ela vivia de Coca-Cola, que mantinha o índice glicêmico e a pressão sanguínea nos trinques. Mas sempre tinha comida na panela, e alguém que chegava e comia um pouco: um arroz, um feijão, uma galinhada, um cozido de carne…. uma coisa assim. A cozinha tinha um cheiro bem característico, de biscoito de polvilho e das comidas da panela, de café e de doce de leite.

Lembro do jeito de ela falar conosco, chamando todos de “fí”. Lembro dela fazendo biquinhos de crochê para pano de prato. Lembro do perfume de sabonete, ela estava sempre perfumada, e dos vestidos floridos, o colarzinho de pérola. O som da tevê ligada. Lembro de ela sempre ajeitando o vestido, o cabelo. Ela tinha uma memória incrível e sempre lembrava dos aniversários de todo mundo, até morrer. Ligava para cada um.

Eu me lembro do dia em que percebi o privilégio de ter uma Bisa como a minha, uma pessoa muito doce, muito querida, que sempre estava recebendo visitas e conversando, embora saísse pouco de casa no período em que convivi com ela. Eu tinha uns doze anos, havia ficado numa casa na represa do rio Paraná e tomado sol demais. Estava torrada. Minha pele toda doía. Fomos visitar a Bisa e, acho que pela única vez na minha vida, me deitei com a cabeça no colo dela. Ela me acariciou e eu me surpreendi com quanto a mão dela era leve, e seu toque não ardia na minha pele. Pensei então que ficar velho era isso: a pele vira papel de seda, os ossos viram isopor, e você já não tem peso. Peguei na mão dela, aquela substância ligeira. Ficar velho era perder massa, densidade corporal. E naquele dia eu também percebi quanto ela era risonha e leve. (Não sei se isso é o resultado de aceitar a fugacidade da existência, desconfio que sim. Talvez só sofra quem se apega à vida. Mas acho que ainda tem tempo pra eu descobrir se é isso mesmo.)

Depois que a minha bisavó morreu eu comecei a ouvir histórias sobre ela que nunca soube, sobre a densidade de sua personalidade e de sua trajetória pessoal. Para cada filho ela tinha uma personalidade diferente; ela também era muitas. Teve dois maridos muito diferentes, e amou a cada um deles de um modo diferente. Viveu em muitos lugares, teve oportunidades diferentes daquelas que tiveram as irmãs. Seus filhos são muito diversos entre si. E, em especial, o seu caminho de mulher nascida no início do século XX foi muito diferente do da minha avó, do da minha mãe, e do meu próprio. Os dilemas que ela enfrentou, as decisões que tomou, as opções que tinha… eram muito diferentes. Esses dias minha avó me contou que, diante das fortes impressões que lhe causou algum dia o comportamento da nova geração, a Bisa lhe respondeu: “Este tempo já não é o nosso, é o deles. Não tem como a gente julgar”. Ela tinha uma enorme clareza sobre essas diferenças entre gerações e, pelo jeito, do mesmo modo que eu me pergunto se teria acesso ao que ela viveu, às dúvidas que experimentou, acho que ela também desconfiava não ter acesso às nossas.

Um dia, quando eu já tinha mais de vinte anos, e fazia alguns anos que minha Bisa tinha nos deixado, comi uma galinhada no sertão de Paraty que me deu um flashback violento da Bisa. E me deu uma vontade de revivê-la, e eu comecei a resgatar uma memória turva da receita de feijão dela. Notei a cúrcuma, o açafrão da terra, que era um ingrediente ao qual eu não prestava muita atenção, e lembrei que o feijão dela tinha aquela cor. Resolvi recuperar a receita do feijão de memória mesmo, até acertar no feijão que me traria um pouco da Bisa de volta.

Verifiquei com a minha mãe que ela punha massa de tomate no feijão. O feijão era o rajado, avermelhado, que fica bem marrom quando pronto. Então eu fiz um basicão: cebola e alho – porque em qualquer prato caseiro brasileiro vai; louro; tomate em lata pré-cozido – porque já tinha aprendido a não usar massa de tomate, e isso foi difícil reverter; a cúrcuma; óleo de cozinha. Ficou próximo, mas faltava alguma coisa. Eu fiz a receita algumas vezes, sem cebola, só alho?  Coloquei paio, não era bem aquilo. Até que um dia minha mãe me contou que a vó gostava de cozinhar com banha de porco.

A banha de porco matou a charada. O feijão feito na banha de porco, com pouca cebola e alho, tomate, louro e cúrcuma, trouxe a Bisa de volta. Aí eu arrumei um jeito de matar a saudade.

Mas a parte estranha dessa história é que eu nunca conferi essa receita com nenhuma das minhas tias-avós. A mais velha, inclusive, está viva, viveu com a minha bisa por décadas, faz tudo igual a ela. Eu nunca falei com ela sobre a receita. Eu sei que, quando comia o feijão da Bisa, decodificar a receita não era uma questão para mim, então não procurei a receita exata – dotada de precisão documental – e sim o acesso à presença da minha Bisa pelo meu próprio paladar. A gostosura dela, da Bisa-da-Luísa, já velhinha, curtida pelo tempo, o clima da casa dela, os móveis, as cortinas. Claro que eu preciso fazer essa parte documental também, por assim dizer, a história oral da vida e da cozinha da Bisa. Mas do ponto de vista sentimental esse feijão me basta. Agora que não como mais porco, eu descobri uma substituição bastante eficaz que é fazer o feijão com um pouco de pimenta branca – como se usa muita pimenta branca em linguiça no Brasil, a gente imediatamente associa ao sabor da banha.

Esta receita, então, não é uma receita da Bisa, mas uma receita para a Bisa, para a Bisa vir. E devo dizer que essa espécie de conjuração virou um procedimento que eu faço muito na minha vida e na cozinha. Trazer valores e sentidos por meio de práticas que não adquiri por uma transmissão convencional: pela família, por amigos… mas por uma memória que não é documento. Cozinhar é se relacionar, e às vezes é se relacionar com vidas que a gente não viveu. No Brasil, onde temos uma enorme diferença de experiências de vida, não deixa de ser um jeito de ir em direção a uma experiência de vida que não temos. e talvez nunca tenhamos, e de podermos ser mais muitos do que já somos.

Feijão para Bisa

Feijão rajado

Pouca cebola, picada miúda

Um dente de alho, picado miúdo

Tomate em lata (quase tanto tomate quanto feijão)

Cúrcuma em pó

Azeite ou banha de porco

Pimenta branca moída

Deixar o feijão na água de um dia para o outro. Picar os tomates em lata em pedaços pequenos. Refogar a cebola e o dente de alho na gordura até dar aquele cheiro de cozinha de vó. Colocar o tomate em lata, refogar, acrescentar o louro e uma pitada de cúrcuma – só o suficiente para dar uma aura dourada no molho, senão amarga – e deixar cozinhar bastante, em fogo baixo – sempre com uma água fervendo ao lado, para ir colocando. Quando já estiver sem o gosto da lata, colocar o feijão e mexer bastante. Idealmente, fazer o feijão sem a pressão, em fogo baixo, lentamente, curtindo um dia em casa. Senão, fazer na pressão até o feijão cozinhar. Depois tirar a pressão e deixar cozinhar um pouco mais, acertar o sal, a pimenta branca, e deixar o feijão ficar mole, mas não desfazendo. De preferência largar o feijão na panela, para ele ir maturando conforme você come – como a Bisa, que o deixava sempre pronto na panela. Gostoso frio, ou requentado.

Moqueca um tanto exegética e já não tão secreta, para Mário de Andrade

11 de Outubro de 2015 § 1 Comentário

A moqueca é uma receita meio mágica. Os ingredientes e a preparação são super simples, então é a atenção aos detalhes que faz a diferença. Ela meio que dá vergonha de passar a receita, porque parece não ter segredo – mas, na verdade, tem segredo sim. Faz tempo que estou para passar minha receita de moqueca de banana da terra aqui no blog. Essa demora, percebo agora, tem a ver com dimensões interessantes da arte culinária, das quais eu ainda não havia tratado neste meu compêndio errático.

Precisei fazer e provar mais de uma moqueca de banana da terra para consolidar uma receita minha. Na verdade, talvez a moqueca de banana da terra que eu faço seja a primeira receita da qual me apropriei, que chamei de minha e, isso, porque fiz bastante pesquisa testando variantes. O que nos leva para uma segunda coisa.

Essa moqueca é um sucesso, mobiliza corações e mentes, então dá vontade de guardar segredo dela. Eu me vi presa na armadilha do segredo; se saísse contando pra todo mundo, minha moqueca poderia perder o poder. Qualquer um faria a moqueca que eu faço. Mas refletindo a respeito, descobri que há mais na moqueca, e esse algo a mais me decidiu a compartilhar receita.

Embora se trate de uma preparação simples, entre a receita e a execução, como entre a partitura e a música, vai um longo caminho. Há a escolha dos ingredientes, há o fogão, a panela, há o estado de espírito do cozinheiro e há sempre mais. Não basta fazer uma moqueca. É preciso fazer moquecas com alguma regularidade. E são as variações a cada execução da moqueca que nos permitem aprimorá-la e transformam esse prato muito simples, com ingredientes facílimos de achar, num acontecimento sensorial coletivo.

Isso faz da moqueca um prato meio ritual, que exige certos ciclos de tempo. O tempo de comprar os ingredientes; de fazer a preparação com amor, que faz a diferença. O tempo de deixar a moqueca descansar, de acolher as pessoas em casa, de deixar o cheiro da moqueca espalhar pela sala. O tempo de repetir a receita algumas vezes, com pessoas iguais, com pessoas diferentes.

Esses aspectos da moqueca a aproximam de coisas que aprendi, em grande medida, estudando a obra etnográfica e de crítica musical do Mário de Andrade. Um traço muito especial de Mário de Andrade era o fato de, como professor de música e como artista, ele conhecer bem a diferença entre a técnica, o efeito estético, e a eficácia, ou a produtividade coletivo-social, de um artefato estético. Ele se dedicou a tentar entender onde ficava o pulo do gato dos efeitos estéticos e sociais das formas estéticas populares e eruditas, e valorizava muito aquelas que, com aparente simplicidade e despojadas de virtuosidade técnica, produziam um sentimento compartilhado num grupo de pessoas. O Mário, não menos importante, era também um gourmand.

Eu poderia falar também das conotações de brasilidade e de lastreamento histórico na receita da moqueca: a origem diversa dos ingredientes, os componentes indígena, africano e português na receita etc. Poderia falar das variações regionais. Mas isso me interessa pouco aqui, porque o propósito aqui é que a moqueca seja feita, e não construir um discurso histórico sobre a moqueca. O mais importante me parece ser: a moqueca é fácil de fazer e, feita com cuidado e atenção a seus tempos, ela tem o poder de mudar estados de espírito e promover encontros, contemplações, revelações. Ela é um prato de poder. E eu me convenci a finalmente publicar a receita da moqueca porque ultimamente a gente está muito precisado de borogodó, de afetos compartilhados – uma dimensão de eficácia à qual o Mário dedicou uma grande parte da sua vida, em sua produção poética e crítica, e também na sua atividade como animador cultural.

Esta moqueca tem uma lição adicional de simplicidade e atenção ao detalhe: ela não leva peixe, nem frutos do mar – e, a imensa maioria das vezes, são os complementos, e não o ingrediente principal, o que faz o prato. (Vide minha receita de ceviche de quiabo). Fiz uma vez esta moqueca para uma baiana que saiu da mesa não acreditando que eu não havia usado nem um caldo de peixe. As associações que a gente faz entre certas carnes e certos temperos são tão fortes, que a gente sente o cheiro do tempero e pensa que está sentindo o cheiro da carne. Identificar essas associações é um grande recurso culinário.

Por conta dos ingredientes envolvidos na minha receita, que se apropria de uns ingredientes de Belém e de Minas Gerais, eu já havia decidido dedicá-la ao Mário de Andrade, que amava a ambas. Mas percebo que só agora, dois dias depois do aniversário dele, é que eu entendi a razão mais profunda para compartilhá-la em sua homenagem. Então agora é a hora de repartir o segredo.

Receita de moqueca de banana da terra (medidas para duas pessoas)

4 bananas da terra (se não forem muito grandes)

2 tomates grandes e maduros

1 pimentão (amarelo ou verde se você quiser deixar a moqueca mais bonita)

pimenta dedo-de-moça fresca, picada miúda

2 cebolas médias

coentro (quanto você gostar)

azeite de dendê (do bom!)

tucupi (vai dar trabalho achar, mas vale a pena)

1 vidro de leite de coco

sal

Procedimentos e segredos:

A panela: fala-se muito da panela de barro, de preferência aquela do Espírito Santo, para fazer a moqueca. Eu acho que dá perfeitamente pra fazer uma maravilhosa moqueca sem a panela de barro, mas ela tem uns efeitos interessantes. (1) Ela exala a memória das moquecas precedentes; (2) ela perfuma a casa assim que esquenta; (3) ela retém o calor e, no fogo baixo, deixa a moqueca borbulhando brandamente, que é o melhor jeito de cozinhá-la. Se você tiver uma panela com tampa, boa, e um fogo suficientemente baixo, você faz uma moqueca igualmente boa. Só que o cheiro só vai espalhar pela casa quando você abrir a tampa para conferir a moqueca.

O azeite de dendê: Eu coloco bem pouco; uma colher de sopa é o bastante para sujar o fundo da panela. Para quem diz não gostar de dendê, sugiro que experimente esta opção, porque em geral a pessoa comeu algo com muito dendê e não deu certo, mas desse jeito só fica um cheirinho bom na comida. E tem que ser um dendê bom (em geral, um vidro dizendo “flor de dendê” já te dá um dendê de boa qualidade).

Descascar: Descascar o pimentão e os tomates faz toda a diferença. Porque o sabor deles se espalha melhor, e a casca é um pouco indigesta e muda o sabor do prato.

Picar: Você pode picar como quiser, em rodela é um clássico – mas clássico de restaurante, onde o cozinheiro tem pressa. Gosto de picar os legumes grosseiramente porque eles podem ficar mais tempo cozinhando e apurando o sabor do caldo.

A montagem da panela: Você monta a panela toda fora do fogo, e só depois de montada a moqueca você a coloca tampada no fogo baixo.

A pimenta: Depende de quanto você gosta. Eu gosto de colocar um dedo-de-moça fresco, inteiro, picado miúdo, logo no começo da receita, para ficar forte. Se preferir você pode colocar só final, ou pedir que cada um coloque sua pimenta na mesa mesmo. Separar um pouco do caldo e deixar uma pimenta dentro cozinhando uns minutos é uma boa pedida para servir de molho sem quebrar a sua moqueca.

Então, Resumo 1:

  • descasque e pique em pedaços meio grandes os pimentões, os tomates, a cebola e a banana da terra
  • coloque os todos dentro da panela, meio misturados. É bom colocar os pimentões e tomates por baixo por que é mais difícil eles grudarem
  • tampe a panela e a leve ao fogo baixo.

O caldo: Eu prefiro fazer o caldo em duas fases. Quando a panela começa a esquentar, eu polvilho uma quantidade suficiente de sal para fazer suar o tomate e o pimentão. Quando eles tiverem suado um pouquinho, junte água morna suficiente para chegar a uns dois dedos de profundidade.

O tucupi: Eu sei que é sacanagem colocar tucupi na moqueca, porque ele é difícil de achar aqui pelo trópico de Capricórnio. Mas, encontrando, vale a pena colocar, porque o tucupi, como o vinho nas receitas italianas e francesas, dá um toque ácido-fermentado suave que quebra lindamente a gordura do leite de coco. Eu só dou uma regada nessa moqueca com tucupi e isso faz toda diferença. (Observação, no Rio de Janeiro se encontra um bom tucupi à venda no restaurante Tacacá do Norte).

O leite de coco: O leite de coco tem de ser integral, afinal você pôs pouco dendê e moqueca tem que ser gorda. Eu acho que o Socôco é o melhor desses de supermercado (tem uns que eu tenho certeza que levam sabor artificial). Nem sempre o fresco é uma boa opção, principalmente em São Paulo, porque muitas vezes um leite de coco fresco batido em casa talha na moqueca (não deixa de ser interessante, mas não dá aquele caldo homogêneo). Um outro segredo é só colocar o leite de coco quando os legumes estiverem cozidos o suficiente para terem virado esponjinhas que vão absorvê-lo. Assim você também não cozinha excessivamente o leite de coco. O caldo fica bom quando o óleo e o caldo já se misturaram ao leite de coco, que ficou com uma cor meio rósea, alaranjada.

O ponto de cozimento: Já vi moquecas com legumes mais cozidos, menos cozidos, passados na chapa antes de ir para a panela… todas elas interessantes. Eu gosto de deixar os legumes cozinharem bastante, para não precisarem ser muito mastigados, mas não desfazendo completamente. Chegando num ponto próximo disso, você desliga o fogo, joga o coentro por cima e deixa a panela borbulhando em seu próprio calor uns 3 minutos. Quanto mais a moqueca descansa, melhor ela fica. Essa receita dá para um repeteco delícia de noite/dia seguinte.

O coentro: Eu sou devota do coentro, mas sabemos que nem todo mundo gosta. Pergunte antes às suas visitas. Gosto de picá-lo grosseiramente, e coloco por cima da moqueca ainda borbulhando, mas com o fogo apagado.

Resumo 2:

  • Deixe os legumes cozinharem um pouco, salgue, deixe mais um pouco e acrescente dois dedos de água morna;
  • Regue com o tucupi
  • Quando os legumes já estiverem cozidos, colocar o leite de coco
  • Esperar cozinhar um pouco mais, até o leite de coco apurar com o caldo e o óleo.
  • Desligar a moqueca, colocar o coentro picado por cima, tampar e deixar descansar entre 3 e 15 minutos (quanto mais, melhor).

——

O leitor atento está se perguntando: já vi Belém, mas cadê Minas Gerais nessa história? De fato, aqui não tem sinal de Minas, que aliás nem é um lugar onde tradicionalmente se come moqueca (salvo engano). Mas Minas aparece no meu acompanhamento preferido, que é uma farofa de castanha do Pará com… ora pro nobis. Essa farofa você faz enquanto a moqueca está cozinhando, e enquanto ela está descansando.

A ora pro nobis é uma folhinha suculenta, muito usada em Minas Gerais, que em geral vem em cozidos, mas que eu descobri que vai muito bem na farofa, porque, por mais que você a pique e refogue, ela sempre retém uma certa umidade que dá um contraste maravilhoso com uma boa farinha e com uma castanha do Pará torradinha. A receita da farofa, então, é esta, nada exegética.

Pique uma mão cheia de folhas de ora pro nobis. Corte em lascas finas umas 4 castanhas do Pará. Suje uma frigideira grande de azeite, e frite tudo junto, deixando a castanha dourar levemente e a ora pro nobis começar a ficar com cara de seca. Acrescente 1 xícara e 1/4 de uma farinha de mandioca (da boa, por favor). Abaixe o fogo e vá fazendo essa farinha passear na panela, acrescentando azeite aos poucos pra ela não chegar a ficar brilhante, mas ficar, assim, atraente. Deixe essa farinha escurecer uns dois tons e sirva ainda quente com a maravilhosa moqueca.

E ponha uma cachaça ou uma cerveja para seus convidados, pra você mesmo e, quem sabe, para o Mário de Andrade também.

Corpo e tempo: contraturas e distensões

28 de Setembro de 2015 § 3 comentários

I.
Hoje acordei com uma contratura muscular na parte baixa das minhas costas. Não conseguia me virar na cama e nem fazer os movimentos mais cotidianos, impulsivos e descalculados que fazemos na transição entre a entrega e o controle corporal ao dormir e ao despertar: virar de lado, jogar os pés para fora da cama, projetar o peso para cima, ou inversamente, na hora de dormir. Tive de fazer um estudo de distribuições de peso alternativas ao padrão que já não funcionava. Descobri que os ombros também podem dar algum impulso, que eu podia contar mais com meus braços e pernas. Naquela situação de dor isso não deixou de me gerar algum, embora escasso, prazer investigativo.

O incômodo principal veio depois de sair da cama, com a constatação da lentidão causada pela dor e pela desobediência de um músculo que eu normalmente não lembro que existe e que, além de emergir da área cega das minhas costas, me exibia sua função estratégica travando outros feixes de músculos e de nervos nas costas, quadris e pernas. Meu corpo em greve, puxada por um músculo lombar transversal e anônimo, que me obrigou a renegar a santa segunda-feira em nome de uma reavaliação conjuntural e da evidenciação conflituosa de tensões mal-resolvidas.

A lentidão é resistente, anti-produtivista, anti-capitalista e contra a hegemonia, a prepotência e a onipotência. Eu estou perto de completar trinta anos, idade que figura tantas vezes como uma espécie de marco do tudo ou nada das expectativas da nossa vida: o amadurecimento que geraria fertilidade laboral, intelectual, libidinal e reprodutiva, mas que como tal também prenuncia a decadência física, as angústias com relação à estabilidade futura e, por que não, a morte. Imagina-se já se ter uma ideia do que se quer da vida, do que está além ou aquém de suas capacidades e interesses, e coisas que já passaram por certo filtro experiencial (ah! os vinte anos) parecem perder o sentido e, com isso, converter-se em perda de tempo. Não há mais tempo a perder. Tome as rédeas da sua vida. Vai e faz. Sem drama. Etcétera.

II.
Há tempo a perder ou a ganhar? Há tempo? Qual tempo? A lentidão do meu corpo em revolta contra essa vida a todo vapor deu carne, sangue e uma dor mais concreta a uma inquietação no plano das idéias que é a indisponibilidade para nossas meditações subjetivas e políticas. Tempo para ter dúvidas, para ouvir as impressões de amigos, para ir a lugares e conhecer pessoas novas com abertura, para permitir que o coração reaja aos sobressaltos de nossa vida citadina. O mundo está também sobressaltado e temos que processar um fluxo incessante e multiescalar de violências, equívocos e crises. E não paramos de trabalhar e de nos preocupar com trabalho, e mesmo dormir se torna uma atividade de reprodução da nossa força de trabalho.

A primeira orientação médica foi como me movimentar aliviando a zona atingida das cargas a que eu normalmente a submeto. A segunda foi tomar dois remédios, um para tirar a dor, outro para tirar a inflamação. Os músculos (agora coletivizados) nessa situação não são facilmente manipulados; uma manobra poderia tornar a situação ainda mais periclitante. O jeito é recorrer a drogas que desarmam por dentro os ataques da dor e do fogo das barricadas que atingiram esse ponto estratégico da máquina – máquina que pretensiosamente vim tratando como um outro, escravo, meu corpo. Uma solução de infiltração para a restauração monárquico-hegemônica, a contra-reforma, a contra-revolução.

As drogas, no entanto, não trabalham reinstaurando a produtividade de modo imediato (e, contra meu próprio juízo, como eu a desejo de volta). Elas instauram inicialmente uma outra lentidão. Se essa lentidão não deixa de ser repressão do conflito, ela por outro lado gera certo tipo de barato (que tampouco deixa de ser, muitas vezes, um descanso para os conflitos). Essa outra lentidão é uma lentidão de astronauta, de bicho-preguiça, de impotência que pode ser resignada ou zen, a depender das disposições do momento. A máquina foi momentaneamente parada e isso é um alívio. Ela fica lá longe e a gente a vê de cima, com a ternura que se vê a foto de um passado distante e se rememora coisas boas ou ruins.

Essa situação inverte a minha perspectiva imediatamente anterior à contratura muscular, quando eu estava vendo o fim do meu ano se abrir sob meus pés, uma vez que todos meus meses, dias e horas até dezembro já estavam sendo vividos por antecipação, e meticulosamente planejados e replanejados (outra fantasia maquínica). Uma compressão do tempo no curto prazo. A distensão do tempo pelos remédios, no entanto, gerou um deslocamento temporal ainda mais vasto. Eu me havia visto velha por causa da contratura, mas na desconexão produzida pelo remédio atravessei um limiar mais radical: me vi morta, dona de um corpo que não é mais o meu, e vi a vida pré-contratura de um ponto de vista de muitas décadas adiante. Olha só como eu era! Quantas ilusões…

III.
Eu tenho amigos velhos e gosto muito de conviver com eles. E essa contratura temporal outra me abriu um novo ponto de vista sobre a velhice, da qual eles falam muito mas que nem sempre entendemos. A velhice exige o desenvolvimento de uma técnica corporal idiossincrática, e de uma arte da vida e do tempo diferentes por limitações de andamento (no sentido musical). Os assim chamados deficientes físicos também são, dessa perspectiva, velhos por antecipação. Lembro de um amigo que é cadeirante e que, num dia em que minha velocidade estava em evidente descompasso com a dele, me explicou que eu não precisava me preocupar com a lentidão (no caso, a lentidão dos deslocamentos dele pela calçada, empurrado por uma pessoa mal-treinada como eu), que a pressa era totalmente inutil. E ela é.

A velhice e as assim chamadas deficiências físicas evidenciam uma vulnerabilidade nossa mais geral, pois para as nossas expectativas de onipotência e produtividade elas parecem ser vizinhas da morte. É claro que essa vizinhança é uma ilusão, pois há gente jovem que morre de repente, há gente que passa muitas décadas de sua vida como velho, e há diferentes modos de conviver com as limitações corporais de cada pessoa. A diferença da morte para a vida é a mesma do zero para o um, é enorme. As outras variações no espectro da vida são irrelevantes em comparação.

IV.
A grande, grande Maria Alice Vergueiro encenou recentemente uma peça, intitulada Why the horse?, onde ela radicaliza um exercício de sua trajetória recente, o de pensar a própria velhice. O ofício do ator também tem suas expectativas de onipotência, de eficácia retumbante, de sedução, e a dificuldade de se movimentar é uma dimensão importante da dificuldade de conviver com a decrepitude. Nessa peça, ela ao mesmo tempo explora as possibilidades insuspeitas de seu corpo à primeira vista limitado e decrépito, usando novos recursos para dançar, dar e sentir tesão, comover, decorar texto, e exercita um olhar sobre o abismo que há entre a vida e a morte. Ela ainda está do lado de cá, assim como eu, na minha mirada desde o pós-morte, lesada pelo antiinflamatório, sobre meu corpo momentaneamente morto (desinflamado? extinto? frio?). Me reencontrei com Maria Alice e com muitos amigos nessa busca por uma técnica corporal para um corpo que não nega sua limitação, e pelo valor expressivo e experiencial da própria lentidão. Ver a morte, em abismo ou com olhar de astronauta, pode ser também gestar novos movimentos. Tomara.

Pão de milho do velho Novo Mundo

16 de Abril de 2015 § Deixe um comentário

Hoje publico uma receita muito versátil, fácil de fazer e, o melhor de tudo, cheia de amor para oferecer para família, amigos e visitas esperados ou de surpresa: um pão de milho, ou melhor, um pão de minuto de milho.

pão de milho

Ela chegou a mim como uma receita norte-americana de origem indígena, mas com um toque do repertório do colonizador – o laticínio, e que parece trazer fortes conotações de história, identidade e domesticidade nos Estados Unidos (veja aqui um interessante artigo do Guardian sobre cornbread). Um pouco como o nosso pão de queijo, digamos.

Essa receita tem mesmo sabor de América e gosto de roça, por ser baseada em milho. E ela tem a virtude de sobreviver bem aos novos tempos e recursos. Quem não está acostumado a comer pães de milho sem a farinha de trigo pode achar um pouco pesado; nesse caso recomendo cortar fatias finas. Se achar que é o caso você pode substituir um quarto do fubá por farinha de trigo ou maisena para deixar a massa mais ligeira, ou então recorrer a este maravilhoso recurso indígena, a pimenta, que como sabemos combina maravilhosamente bem com milho.

As receitas que encontrei tinham como laticínio tanto o leite, quanto o iogurte ou o buttermilk (que pode ser algumas coisas diferentes; uma espécie de coalhada feita com limão, o soro que sai da manteiga batida, fermentado ou não…). Como faço coalhada regularmente em casa, eu uso ela mesmo e dá certo. Minha amiga que me apresentou esse pão parece que fez com coalhada seca ou o equivalente industrial, o “iogurte grego”.

Sem mais delongas, ligeiro como a preparação, lá vai ele:

Ingredientes

2 xíc fubá fino
1 1/2 xíc coalhada, ou leite, ou coalhada seca/iogurte grego (talvez precise de mais) – aprenda a fazer coalhada aqui
1 colher de chá de sal
2 ou 3 colheres de chá de pó Royal
1 ovo
4 colheres de manteiga ou de azeite (talvez precise de mais)

Se quiser:
3 colheres de mel ou açúcar mascavo
2 pitadas de pimenta seca (calabresa, ou dedo de moça, ou do reino mesmo)

Procedimentos:

Deixe os ingredientes fora da geladeira para eles chegarem à temperatura ambiente.

Ligue o forno a 200-220 graus. Unte e enfarinhe uma forma de pão, ou use papel manteiga dentro da forma.

Bata a coalhada com o ovo e a gordura no liquidificador. Coloque o fubá numa bacia. Faça um furo no meio do fubá e verta a mistura do liquidificador. Misture com uma boa espátula. O ponto bom para a massa é quando está grossa ainda, mas não dá para manipular mais com a mão. Se precisar diluir, acrescente alternadamente um pouco de coalhada, e um pouco de azeite e vá misturando.

Quando a massa estiver no ponto, coloque o pó Royal e misture bem.

Verta a massa na forma, leve ao forno e deixe pelo menos 25 minutos antes de ver se está boa. Para mim leva uns 40 minutos para ficar pronta. O pão deve ficar dourado por cima e fofo – embora bem denso – quando você espeta com o garfo, deixando quase nenhum resíduo.

Tire do forno e pode comer ainda quentinho, com o que quiser.

Fazer chucrute é fácil!

18 de Fevereiro de 2015 § Deixe um comentário

Já fazia um tempo que eu estava pensando em fazer chucrute caseiro. Sempre gostei de chucrute, que serve tanto de acompanhamento como de tempero (por exemplo num sanduíche), mas não é muito fácil de achar no supermercado. Só que eu tinha medo de fermentar o repolho sozinha em casa.

Esses dias me deu um ataque de Amélia, crochetei porta-copos, resolvi cultivar orquídeas em casa, e finalmente criei coragem para tentar o chucrute. E olha, chucrute é mais fácil que crochê e que orquídeas… deu vontade de chorar de vergonha, tantos anos de privação de uma coisa tão estupidamente barata e fácil de fazer.

Então, o chucrute (ou sauerkraut, em alemão) é basicamente um repolho fermentado com as bactérias que gostam das folhas docinhas dele – e que, por acaso, são lactobacilos. Em geral o chucrute vendido comercialmente é pasteurizado, o que é uma pena, porque ele é um excelente probiótico.

Como com qualquer fermentação, é importante criar um ambiente minimamente propício para elas proliferarem, e para outros microorganismos indesejados não competirem com elas. Como o chucrute fica ácido, é bom usar um vidro em vez de plástico, e esse vidro deve estar decentemente limpo – não precisa passar cloro nele, vai que o cloro mata suas bactérias? Também é bom dar uma lavadinha no repolho, mas não precisa ser muito sistemático, porque as próprias bactérias e o sal vão dar conta de cozinhá-lo. Trabalhe também com instrumentos, tábua, pia etc. bem limpos, claro,

Aviso também que esta é uma receita de preguiçoso; ela fica mais crocante e rústica. Quem quiser receitas mais complexas pode ver esta e esta, que têm mais cara de chucrute de restaurante.

Então lá vai a receita.

Você vai precisar de:

1 ou mais vidros, limpos

1 bacia

repolho

sal

água filtrada

grãos de zimbro/erva-doce/pimenta da Jamaica, levemente amassados num pilão (mulheres grávidas ou aspirantes a mães, não usem zimbro, que é abortivo)

guardanapo ou papel toalha

elástico ou barbante

Obs: Um quarto de uma cabeça média de repolho dá para duas pessoas por uma semana, se você usar o chucrute como tempero, e cabe num vidro desses de doce.

Procedimentos

Tire as folhas exteriores do repolho que estiverem feias ou muito fibrosas e jogue fora. Reserva a primeira que for bonita, inteira.

Pique quanto repolho você quiser em fatias o mais finas que puder (se tiver um cortador desses japoneses, melhor ainda).

Coloque o repolho picado numa bacia e vá polvilhando com o sal e revolvendo com as mãos. O sal é importante para selecionar quais bactérias vão de fato trabalhar – as boas! Para a quantidade acima, tipo duas colheres de chá de sal.

Mexa o repolho dentro da bacia, amassando com as mãos  até ele dar uma boa murchada. Quando você vir que ele não vai murchar mais, jogue os grãos de temperos e misture com as mãos. (Os temperos servem para você não virar um balão de gás depois de comer o chucrute.)

Coloque a mistura com as mãos dentro do vidro, amasse um pouco, deixe uns 2cm de vidro livres e cubra com um pedaço da folha de repolho que você reservou. Dissolva uma colher de sopa de sal em duas xícaras de água filtrada em temperatura ambiente, passe essa água pela bacia para pegar um suquinho de repolho que tenha ficado, e vá colocando essa água e pressionando tudo para baixo, até a água cobrir todas as folhas, inclusive a de cima. Eu deixo tipo 1cm de água para cima das folhas.

É muito importante você não deixar o repolho entrar em contato com o ar, senão ele vai estragar. Por isso, as fontes que consultei recomendam colocar um peso (também limpinho) em cima dessa folha de repolho, como um pires. Eu usei um copinho desses de cachaça, vazio mesmo.

Cubra o vidro com um pano bem limpo, ou um papel toalha, e amarre bem para nenhum bichinho resolver entrar lá. Durante a fermentação você não vai fechar o vidro totalmente; se usar um vidro vedado é importante abrir um pouco vidro para deixar os gases saírem de vez em quando.

Escolha um lugar protegido e escuro – como uma parte do seu armário da cozinha – e deixe o repolho lá quieto. Espie de vez em quando. A cultura que vai aparecer na água e no pesinho deve ser clarinha. Se aparecer mofo escuro, jogue tudo fora e comece de novo. Acompanhe também o cheiro (que vai invadir seu armário): deve ter fedor de coisa boa, não de coisa estragada – quem gosta de chucrute, nabo, queijo, sabe do que estou falando.

O meu repolho levou uma semana para ficar suficientemente curtido, acho que podia ter ficado mais, mas deve depender do clima. Quando achar que está bom, abra com as mãos limpas, e tire um pedaço para experimentar. Se quiser já usar, feche o vidro e leve para a geladeira. Caso contrário, volte a cobrir o vidro e deixe no canto dele mais uns dias.

E é só isso.

De nada 😉

Update: quem quiser uma versão em vídeo, e com um vidro de conserva fechado, tem este vídeo bem didático no YouTube, da Cristiane Zimmerman: